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Chapter 45 - Ecos Antigos e Descobertas Sombrias.

O cheiro de couro antigo, pergaminho e cera queimada enchia o ar da biblioteca da mansão Freimann, um aroma que para Margareth sempre foi sinônimo de refúgio e conhecimento. Sentada em sua poltrona habitual, um tomo antigo repousava aberto em seu colo, mas seus olhos, de um verdes-claros profundo e perspicaz, estavam distantes. Não liam as palavras impressas, mas sim as linhas invisíveis de suas próprias memórias, tecidas ao longo de décadas de uma vida dedicada às artes arcanas.

Os eventos recentes – o ataque à mansão, a criatura bípede, as descobertas alarmantes de Iria sobre o Nexo Arcano sob seus próprios pés e a sinistra Ordo Umbrae – haviam despertado algo adormecido em sua mente. Uma lembrança de sua juventude, um período em que a curiosidade insaciável e uma certa rebeldia contra as convenções rígidas do Conselho Arcano a impulsionaram a explorar caminhos proibidos. Ela havia se deparado com ensinamentos e práticas que eram considerados heréticos, artes que falavam de manipular a própria essência da vida, de moldar a alma. Não por malícia, mas por uma sede incontrolável de saber, de entender os limites do poder arcano.

— A fronteira entre o saber e o abismo… sempre foi tênue. Eu dancei na beira disso.

O sussurro escapou de seus lábios, quase inaudível, perdido entre as estantes repletas de volumes. As runas vistas recentemente na investigação de Iria, os padrões de corrupção da mana que as bestas alteradas deixavam para trás, as descrições detalhadas da filosofia da Ordo Umbrae… tudo isso ressoava perigosamente com aqueles fragmentos de conhecimento que ela havia encontrado e estudado décadas atrás. A arte proibida da Manipulação da Alma, que ela havia apenas arranhado a superfície, tinha a mesma base, a mesma premissa de extrair e moldar a Força Vital, a essência da vida.

Margareth nunca havia se aprofundado a ponto de se corromper, de cruzar a linha da moralidade arcana. Sua Força de Vontade era inabalável, e sua ética, embora flexível em sua busca por conhecimento, sempre a manteve ancorada. Mas ela reconhecia a assinatura. Aquela não era uma seita nova, surgida das sombras de um descontentamento recente. A Ordo Umbrae era um eco antigo, uma sombra persistente que retornava ciclicamente na história, moldando e corrompendo sempre que o mundo baixava a guarda, sempre que a ignorância ou a arrogância dos arcanistas permitia uma brecha.

Ela fechou o livro lentamente, o som suave do couro contra o couro ecoando no silêncio da biblioteca. Seus olhos, antes perdidos nas memórias, agora brilhavam com uma determinação fria e inabalável. Uma onda de apreensão a percorreu – a ameaça era mais antiga e profunda do que qualquer um imaginava. Mas, junto com a apreensão, veio uma certeza. Seu conhecimento proibido, aquele que ela havia guardado em segredo por tanto tempo, poderia ser a chave para entender e, talvez, combater essa escuridão ancestral.

— Se é com o passado que eles lidam… então é com o passado que eu os enfrentarei.

Sua voz, agora firme e resoluta, preencheu a biblioteca. Margareth se levantou, o livro antigo ainda em suas mãos, e caminhou até a janela. Lá fora, a mansão Freimann dormia sob a luz da lua, um bastião de luz e vida que a Ordo Umbrae desejava consumir. Mas Margareth sabia que a luz, por mais frágil que parecesse, possuía uma resiliência que a escuridão jamais poderia compreender. E ela, com seu conhecimento do passado e sua Força de Vontade inquebrável, seria a muralha que protegeria essa luz.

★★★

Enquanto Margareth mergulhava nas sombras de seu próprio passado, Lucius e Albert avançavam em sua jornada, adentrando o Feudo Valerius. A paisagem, que deveria ser vibrante e cheia de vida, estava envolta em um silêncio desconfortável. Não havia o burburinho habitual das crianças brincando nas ruas, nem o latido dos cães ou o canto dos pássaros. Os animais pareciam evitar a região, e as tavernas e comércios, embora abertos, tinham poucos clientes e eram atendidos por olhares desconfiados. Era uma quietude artificial, quase opressora, que Lucius e Albert, com sua experiência em lidar com distorções arcanas, notaram imediatamente.

— Este lugar está… estranho — Albert comentou, sua voz baixa, enquanto a carruagem passava por uma praça vazia. — Como se a vida tivesse sido sugada daqui.

Lucius assentiu, seus olhos castanho-claros varrendo o ambiente. — É a assinatura. A mesma energia corrompida que encontramos na estrada. Eles estão aqui. Ou estiveram.

Ao chegarem à mansão do Barão Von Valerius, foram recebidos por um homem de postura rígida, o Barão Theron Von Valerius. Ele era um nobre de Sangue-Puro, com traços finos e uma aparência impecável, mas havia algo artificial em seu tom de voz e em seu sorriso. Ele tentava ser cordial, mas seus olhos afiados desviavam-se em perguntas diretas sobre os incidentes recentes. Gaguejava levemente ao falarem sobre a Ordo Umbrae, e falava pouco da própria população, como se fosse irrelevante. Era um comportamento que levantava as primeiras suspeitas.

— Meu feudo está em perfeita ordem, senhores — o Barão Theron afirmou, com um sorriso forçado que não alcançava seus olhos. — Certamente... quaisquer rumores de movimentos suspeitos são exageros ou... mal-entendidos. Meu povo é leal e meu feudo, próspero.

Lucius e Albert trocaram um olhar discreto. A prosperidade do feudo parecia uma fachada, e a lealdade do povo, uma imposição. Com relutância, e após muita insistência, o Barão Theron concedeu a Lucius e Albert permissão para investigar uma região da floresta ao sul, alegando ser apenas para “satisfazer a paranoia dos conjuradores”. Era evidente que ele não levava a sério a ameaça, ou estava escondendo algo.

★★★

Com a permissão relutante do Barão Theron Von Valerius, Lucius e Albert, acompanhados por alguns de seus guardas mais leais, adentraram a floresta densa e silenciosa que se estendia ao sul do feudo. O silêncio era perturbador, quebrado apenas pelo farfalhar de suas próprias passadas e o ranger ocasional de galhos sob seus pés. Não havia o canto dos pássaros, nem o sussurro do vento entre as folhas – apenas uma quietude opressora que parecia absorver qualquer som. A vegetação, embora densa, parecia mais morta do que viva, com árvores retorcidas e sem folhas que se erguiam como esqueletos contra o céu cinzento.

Após horas de busca, sob a luz fraca que filtrava através da copa densa das árvores, eles se depararam com uma visão inesperada: uma casa grande e isolada, que não constava em nenhum mapa da região. Era uma estrutura antiga, construída com pedras escuras e madeira retorcida, que parecia ter sido erguida há séculos, mas que, de alguma forma, ainda se mantinha funcional, apesar de seu aspecto sombrio. As janelas estavam abertas, as portas entreabertas, como se tivesse sido abandonada às pressas, mas havia algo de sinistro na sua quietude. Uma atmosfera pesada, quase sufocante, pairava ao redor da casa, e uma energia arcana distorcida, quase palpável, emanava de suas paredes. Era como se o próprio ar estivesse envenenado, causando um desconforto físico que Lucius e Albert, acostumados com distorções arcanas, sentiram imediatamente.

— Esta não é uma casa comum — Albert murmurou, sua mão já na empunhadura de sua espada. — A mana aqui está… doente. Corrompida.

Lucius assentiu, sentindo o ardor em seus próprios sentidos arcanos. Era a assinatura da Ordo Umbrae, inconfundível. Com cautela, eles se aproximaram, seus guardas em formação, espadas em punho, prontos para qualquer coisa. O silêncio dentro da casa era ainda mais opressor do que o da floresta. Ecos que pareciam passos ressoavam pelos corredores vazios, mas não havia ninguém. Um espelho quebrado na parede do hall de entrada, embora estilhaçado, ainda refletia uma sombra que não estava presente, uma distorção sutil que causava um arrepio na espinha. Em um canto, uma vela acesa, feita de gordura humana, queimava lentamente, exalando um cheiro adocicado e nauseante que se misturava ao odor de mofo e podridão.

O interior da casa era um cenário de horror e revelação. Círculos arcanos estavam marcados no chão de pedra, alguns ainda brilhando fracamente com uma luz esverdeada, como olhos malignos que observavam cada movimento. Em algumas paredes, sangue seco formava símbolos complexos, runas que não pertenciam a nenhuma escola oficial de artes arcanas, mas que Lucius reconheceu como sendo de um padrão mais antigo, anterior às academias, anterior até mesmo aos Quatro Selos Fundamentais. Era um conhecimento proibido, perigoso, que a Ordo Umbrae havia desenterrado.

Livros antigos e grimórios estavam empilhados em mesas e prateleiras, seus títulos em línguas desconhecidas, algumas delas pré-arcanas, que Lucius mal conseguia decifrar. Pergaminhos estavam abertos, revelando símbolos arcanos que não correspondiam a nenhuma escola de artes arcanas conhecida, e cânticos em uma língua gutural e perturbadora. Os escritos falavam de rituais de extração de essência, de manipulação da alma e de corrosão do véu entre os mundos. Não eram meros textos, mas manuais de corrupção e invocação, detalhando métodos para drenar a Força Vital e infundir a energia corrompida em criaturas e até mesmo em seres humanos.

Fragmentos de cristais negros, semelhantes aos encontrados nas bestas alteradas, estavam espalhados pelo chão, pulsando fracamente com a mesma luz doentia. Havia também mapas rabiscados, com pontos marcados – a mansão Freimann, Velunor (a capital), e outros locais desconhecidos, todos interligados por linhas de energia arcana corrompida. Era um plano, uma teia de escuridão que se estendia por todo o reino.

— Isso não é apenas corrupção… isso é… engenharia arcana da alma — Lucius murmurou, sua voz grave, enquanto folheava um dos grimórios. Ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A profundidade do conhecimento ali contido, a frieza e a precisão dos rituais, revelavam uma organização muito mais sofisticada e perigosa do que eles haviam imaginado. A Ordo Umbrae não era apenas uma seita de fanáticos; era uma força com um objetivo claro e meios terríveis para alcançá-lo.

Eles recolheram tudo que podiam carregar – livros, mapas, pequenos artefatos – e a desconfiança em relação ao Barão Theron Von Valerius se solidificou. Era evidente que ele não era apenas um nobre ignorante, mas um cúmplice, ou talvez uma vítima, da Ordo Umbrae. A casa na floresta era um centro de operações, um lugar onde a escuridão estava sendo cultivada, e o Barão, de alguma forma, estava envolvido. A cada nova descoberta, a teia da Ordo Umbrae se revelava mais complexa e assustadora, e a urgência de sua missão se tornava ainda maior.

★★★

Ao retornarem à mansão do Barão Theron Von Valerius, Lucius e Albert encontraram um cenário de caos e agitação. A quietude que antes era sutil, agora era opressora, substituída por um burburinho ansioso de guardas e criados. O crepúsculo tingia o céu de tons alaranjados e roxos, mas a luz fraca apenas acentuava a desordem. Guardas corriam de um lado para o outro, alguns visivelmente assustados, seus rostos pálidos e seus olhos arregalados. O Barão Theron Von Valerius simplesmente desapareceu.

— O Barão… ele sumiu! — um dos guardas, um homem corpulento com a armadura desalinhada, exclamou, sua voz embargada pelo pânico. — Ninguém o viu sair. Ele estava em seu estudo, e de repente… não estava mais lá!

Lucius e Albert inspecionaram o estudo do Barão. Não havia sinais de luta evidente, nenhuma porta arrombada, nenhuma janela quebrada. Mas pertences estavam derrubados, cadeiras tombadas, papéis espalhados pelo chão, como se ele tivesse sumido em meio a algo… ou alguém. A ausência de um corpo ou de qualquer rastro claro apenas aumentava o mistério e a apreensão. Todas as buscas nas redondezas foram infrutíferas. Era como se o Barão tivesse sido apagado da existência.

Lucius e Albert entenderam rapidamente a gravidade da situação. O Barão Theron Von Valerius ou era um cúmplice da Ordo Umbrae, e havia sido descartado após cumprir seu propósito, ou era um peão descartável, usado e eliminado após sua serventia. De qualquer forma, sua ausência confirmava as piores suspeitas. A Ordo Umbrae não estava apenas agindo nas sombras; eles estavam infiltrados nas mais altas esferas da nobreza, e não hesitavam em eliminar qualquer um que se tornasse um obstáculo ou um risco.

Após horas de procura infrutífera, Lucius e Albert decidiram que não havia mais nada a ser feito ali. A cada minuto que passava, a ameaça se tornava mais real, mais iminente. Eles enviaram um mensageiro de confiança para o Conselho Arcano e para o Rei, relatando suas descobertas – a casa na floresta, os livros proibidos, os rituais de manipulação da alma, e o desaparecimento inexplicável do Barão Theron Von Valerius. Enfatizaram a gravidade da situação e a necessidade de uma ação imediata, antes que a Ordo Umbrae pudesse avançar com seus planos sinistros. Eles então decidiram retornar à mansão Freimann, levando consigo as provas coletadas, sabendo que o tempo era um luxo que não possuíam.

Durante a viagem de volta, a carruagem balançava suavemente na estrada escura. Lucius estava sentado, com um grimório particularmente estranho sobre o colo. Era um tomo antigo, encadernado em couro negro manchado, com inscrições que se contorciam levemente sob o olhar, como se estivessem vivas. Na capa, um título parcialmente apagado em uma língua pré-arcana, que ele mal conseguia decifrar, mas que, de alguma forma, ressoava com algo profundo dentro dele. Era o livro que ele havia notado na casa da floresta, o que falava de almas de outros universos.

Ao folhear as páginas amareladas, Lucius leu trechos que o deixaram tenso. As palavras eram perturbadoras, falando de conceitos que desafiavam toda a lógica arcana que ele conhecia:

— Da Trama dos Véus…

— Transposição de Essências…

— Dos que Retornam de Além dos Limites do Fio Vital…

Mesmo sem entender completamente, o conteúdo falava de conceitos absurdos: múltiplas realidades, vidas deslocadas, a transição de uma essência para corpos de outros mundos. Era uma teoria que, se verdadeira, mudaria tudo o que eles sabiam sobre a existência, sobre a vida e a morte, sobre a própria alma. Ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O livro tinha uma página trancada por um selo arcano, com um aviso gravado em uma caligrafia antiga:

— Aqueles que leem… tornam-se portadores do fardo eterno.

Ele franziu o cenho, fechou o livro com força e o apertou contra o peito. A mente de Lucius, sempre pragmática, era agora assombrada por essa nova e perturbadora possibilidade, especialmente à luz das memórias de Elian. Ele sentia que este livro poderia conter respostas, mas também perigos inimagináveis. Se Elian era, de fato, uma alma de outro universo, então a Ordo Umbrae poderia estar buscando algo muito mais grandioso e aterrorizante do que a simples corrupção de mana.

Mesmo que Elian nunca tenha dito abertamente ser de outro mundo, Lucius sempre ficou atento quando ele perguntava sobre reencarnação. Principalmente uma vez, quando voltando da mansão de Margareth, ele perguntou diretamente se Lucius acreditava em algo do gênero. Sem contar a inteligência que ele sempre demonstrou ter. Isso não é algo natural para uma criança de apenas dois anos de idade. Era isso que Lucius sempre observava em seu filho.

Ele então observou pela janela, o olhar distante, os pensamentos rodando em sua mente. A escuridão da noite parecia mais densa, mais ameaçadora. O que mais… essa Ordo busca desenterrar? A pergunta pairava no ar, sem resposta, enquanto a carruagem seguia seu caminho de volta para a mansão Freimann, levando consigo não apenas as provas de uma conspiração sombria, mas também a semente de uma verdade que poderia abalar os alicerces de seu mundo.

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