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Chapter 19 - Moldando a Vontade II

Após o almoço, tirei um cochilo revigorante — conforme a instrução recorrente de Margareth.

Meu corpo, ainda pequeno e em desenvolvimento, necessitava de descanso físico para assimilar o intenso trabalho energético. Mas minha mente, mesmo habitando um corpo de três anos, parecia faminta demais por conhecimento e experiência para adormecer por completo. Enquanto os olhos se fechavam, dentro de mim ainda ardia a lembrança vívida da chama contida — da energia que não explodira, mas respondera à minha Vontade silenciosa.

Quando despertei, o sol começava sua descida no horizonte, tingindo o céu de um dourado suave e melancólico. Caminhei até o campo de treinamento, onde Margareth já me aguardava em silêncio, sua figura serena contra a luz do entardecer. Sentei-me ao seu lado na relva macia e, após alguns minutos de quietude contemplativa, observando as sombras se alongarem, não consegui mais conter a pergunta que vinha crescendo em meu íntimo desde o início daquele dia de treino intenso e revelador:

— Margareth… o que é, exatamente, o Nexo Arcano? Você o mencionou... disse que eu nasci com ele.

Ela não respondeu de imediato. Inspirou profundamente o ar fresco do começo da tarde, os olhos fixos no horizonte distante, como se buscasse as palavras mais precisas para descrever algo que reside além da linguagem comum, no limiar do mistério.

— O Nexo Arcano, Elian... é uma marca indelével. Uma assinatura espiritual. Uma marca que se grava no espírito daqueles que vislumbraram o limiar da morte — e, por algum desígnio ou força inexplicável, retornaram. Não é uma tatuagem física que se possa ver, nem uma cicatriz que o tempo possa curar. É como uma fenda luminosa na própria tessitura da alma, uma ponte sutil e permanente entre o mundo tangível que percebemos e a essência energética que pulsa além dele, o fluxo vital do universo.

Senti meu peito contrair-se novamente, uma ressonância profunda com suas palavras. Eu... havia morrido e reencarnado nesses corpo. Ainda bebê, fui declarado natimorto. Retornei à vida após cinco longos minutos de inexistência aparente. Algo em meu âmago, uma sabedoria que não vinha desta vida —mas sim da vida passada —, reconheceu a verdade em suas palavras antes mesmo que minha mente pudesse processá-las completamente.

— Essa marca, quando desperta e compreendida, muda tudo — continuou ela, a voz calma, mas carregada de significado. — Ela permite que a Vontade se comunique diretamente com a energia, que responda à intenção pura, antes mesmo da necessidade de selos complexos, gestos ritualísticos ou palavras de poder. A manifestação torna-se mais fluida, mais intuitiva. Por isso, alguns sábios antigos a denominam a ‘resposta viva’ da alma, a conexão direta com a fonte.

Permanecemos em silêncio por um momento, o peso de suas palavras pairando no ar carregado de energia do entardecer, até que ela disse algo que me causou um arrepio involuntário, uma premonição sutil:

— Contudo, também existem aqueles que, não tendo passado pela experiência limítrofe da morte, tentam forçar a criação de um Nexo Arcano. Arcanistas ambiciosos ou desesperados que almejam ardentemente esse vínculo absoluto com a essência arcana, buscando um atalho para o poder. Tentam forjar a marca através de rituais perigosos que desafiam as leis naturais, meditação extrema que beira a dissolução da consciência individual, ou mergulhos profundos e arriscadíssimos na própria alma, buscando romper o véu à força. Estima-se que, de cada mil que tentam essa via artificial e perigosa... apenas sete obtêm sucesso. Os demais... geralmente pagam um preço terrível pela ousadia.

Permaneci em silêncio. O número – sete em mil – ecoava em minha mente como um trovão distante, ressaltando não apenas a raridade, mas o imenso perigo envolvido na busca artificial por aquilo que me fora concedido ao nascer... ou renascer.

— Mil é apenas uma estimativa, claro... — Margareth ponderou, o olhar distante. — Mas, na verdade, não são muitos os que sequer conhecem a existência das artes arcanas silenciosas, ou o verdadeiro caminho para alcançá-las através do Nexo. A maioria se contenta com os selos e encantamentos tradicionais. E é justamente por isso que poucos tentam essa via alternativa, e a vasta maioria falha catastroficamente. Seres humanos, com suas falhas inerentes e sua ânsia por poder, não deveriam brincar levianamente com os limites tênues entre a vida e a morte, entre a ordem natural e o caos primordial — embora alguns, em sua arrogância ou desespero, insistam em fazê-lo, ignorando as consequências.

A voz de Margareth era firme, mas percebi uma sombra de amargura, talvez uma lembrança dolorosa, por trás de suas palavras.

— Podemos considerar que aqueles que tentam forjar um Nexo artificialmente... são praticantes de artes das trevas? — perguntei, hesitante, sentindo a gravidade do assunto.

— Sim… e não. — Ela cruzou os braços, o olhar voltado para o chão por um instante, como se revirasse lembranças desagradáveis em sua mente. — Sim, porque alguns dos mais depravados tentam impor essa criação forçada em outras pessoas — geralmente, crianças inocentes ou indivíduos vulneráveis, cujas almas são mais maleáveis. — Sua expressão contraiu-se numa máscara de nojo, raiva e desprezo profundo, revelando uma faceta que eu raramente via. — E não… porque, se a tentativa for realizada no próprio indivíduo, através de seu próprio esforço e risco, sem coagir ou prejudicar terceiros diretamente, não é considerado um crime pelas leis atuais do Reino. Permite-se a busca pessoal, desde que não envolva o sacrifício ou a manipulação de outras vidas inocentes.

— Então o Reino tem conhecimento oficial sobre as artes silenciosas e o Nexo Arcano? — perguntei, genuinamente surpreso. Até aquele momento, imaginava que fosse um conhecimento esotérico, quase proibido, restrito a poucos iniciados... praticamente uma lenda sussurrada em corredores escuros.

— Sim. O Reino sabe. Oh, se sabe... — Margareth suspirou profundamente, seu semblante anuviado por uma tristeza antiga e palpável. — Afinal… durante longos e sombrios anos, sob o reinado anterior, reis e rainhas utilizaram esse conhecimento em experimentos secretos e abomináveis, buscando criar soldados arcanos perfeitos ou alcançar a imortalidade. Seres humanos foram usados como receptáculos descartáveis, cobaias em rituais cruéis para tentar forçar a criação de Nexos Artificiais. Crianças sequestradas. Mendigos desaparecidos das ruas. Escravos comprados para esse fim. Indivíduos considerados ‘inferiores’ pela nobreza da época.

Ela fez uma pausa, a respiração pesada, como se as próprias palavras a sufocassem.

— Foi apenas quando Hakamiah, o filho do então rei Amenediel, um homem atormentado pela culpa e pelo conhecimento dos atos de seus pais, assassinou-os em seus próprios aposentos, ascendeu ao trono e revelou ao mundo os horrores cometidos em nome do poder... que a verdade sombria veio à tona. Ele classificou tais experimentos como a mais vil forma de artes das trevas e os proibiu oficialmente em todo o Reino, sob pena de morte para quem os praticasse em terceiros.

Engoli em seco, o horror da revelação me gelando por dentro.

— Então... o antigo rei utilizava o próprio povo como... cobaias para seus experimentos arcanos?

— Sim. Em nome do poder. Do controle absoluto sobre a vida e a morte. Da busca insana por uma eternidade artificial e vazia. — Ela olhou para mim, os olhos pesados como os de quem carrega o fardo de ter visto a face mais obscura da humanidade e da magia. — E é por essa razão sombria, por esse passado manchado de sangue e sofrimento, que, hoje, poucos ousam sequer mencionar esse caminho perigoso da criação forçada do Nexo.

Permaneci em silêncio, processando a informação aterradora. Tudo aquilo parecia vasto demais, pesado demais para minha compreensão atual, uma sombra escura pairando sobre o mundo aparentemente pacífico em que eu renascera.

Margareth, percebendo meu desconforto e a palidez em meu rosto, continuou com um tom mais suave, buscando me trazer de volta ao presente:

— Mas você... você nasceu com essa marca, Elian. O Nexo Arcano é parte de sua essência desde o seu retorno à vida. Não foi forjado, não foi buscado; ele simplesmente é. — Margareth virou-se para mim, o olhar agora focado e determinado, como se afastasse as sombras do passado para focar no futuro. — Por essa razão singular, decidi que chegou o momento. Iniciaremos o treinamento específico para o uso das artes arcanas silenciosas, o caminho natural daqueles que possuem o Nexo como um dom inato.

Margareth levantou-se da pedra com calma e caminhou em minha direção. Seu manto escuro balançava suavemente ao ritmo da brisa vespertina, conferindo-lhe uma aura de mistério e poder. Seus olhos, antes marcados pela severidade da mestra ou pela sombra da lembrança, agora carregavam um tom quase sereno — como quem observa um raro broto de esperança germinar em meio ao gelo invernal de um passado sombrio.

— Você já compreendeu, em um único dia, mais do que a maioria dos aprendizes consegue em meses de tentativas de sentir a energia interior — disse ela, a voz baixa, mas firme e encorajadora. — Sentir a energia, contê-la, reconhecê-la sem se deixar dominar por ela... isso demonstra uma afinidade e uma sensibilidade raras, Elian. Um sinal claro da presença do Nexo.

Permaneci em silêncio, atento, sentindo meu corpo ainda vibrar levemente com a energia residual da prática, como se minha alma ainda não tivesse se reassentado completamente após a intensa jornada interior.

— Agora vem a etapa mais delicada — continuou ela, parando diante de mim, sua presença imponente, mas não opressora. — Aprender a moldar a Vontade conscientemente, a dar forma à intenção.

Ela apontou para meu peito com dois dedos, sem me tocar fisicamente, mas senti a energia em seu gesto.

— A Vontade não é apenas energia bruta. Ela nasce do Querer — aquele impulso puro que emana do âmago do ser, a força motriz primordial. Você já o sentiu hoje: é aquela urgência silenciosa que o impulsiona a agir, mesmo antes que as palavras ou pensamentos se formem na mente.

Seus dedos moveram-se lentamente até minha testa.

— Mas Querer sem Consciência é como um rio caudaloso sem leito definido. Transborda, destrói em seu caminho, perde-se em seu próprio ímpeto descontrolado. A Consciência confere direção, propósito e limite. É ela quem distingue o mero desejo impulsivo da intenção focada e clara. Quando você conteve sua energia como uma vela entre as mãos, foi sua Consciência que a moldou, mesmo que ainda de forma instintiva, guiada por minhas palavras.

Ela então se afastou alguns passos e virou-se de lado, contemplando o céu ainda azul, mas que logo começaria a escurecer.

— E, por fim, quando Querer e Consciência estiverem perfeitamente alinhados e equilibrados, virá o terceiro pilar, aquele que ancora a manifestação no mundo físico, que confere poder e substância à Vontade: a Energia Vital. A própria essência da vida que flui em você.

Olhei para ela, atento e profundamente curioso. Não me atrevi a interromper, mas senti meu coração acelerar levemente. Algo naquela palavra — Vital — parecia ressoar com uma parte antiga e fundamental de minha essência, algo que eu conhecia de outra vida, de outras práticas.

Margareth sorriu levemente, percebendo minha reação e o despertar dessa curiosidade profunda.

— Mas isso... deixaremos para um momento posterior. Quando sua base estiver mais sólida. Você já deu um passo significativo demais para um único dia de treinamento.

Ela então retornou à pedra onde costumava se sentar, sua silhueta recortada contra o céu crepuscular, e acrescentou, como um selo final para as lições do dia:

— Por ora, memorize isto em sua alma, não apenas em sua mente: Querer é o impulso inicial, a faísca. Consciência é a forma diretiva, o leito do rio. Moldar a Vontade é a arte sutil de unir esses dois elementos com equilíbrio e precisão. Só depois... virá o terceiro elemento, a Energia Vital, aquele que confere vida, poder e realidade à manifestação arcana.

E então, como se o próprio mundo tivesse pausado para absorver aquelas palavras carregadas de sabedoria ancestral, o vento soprou um pouco mais forte, levantando uma pequena espiral de poeira dourada pela última luz do entardecer entre nós, antes de se aquietar novamente.

Após as palavras finais de Margareth, permaneci ali, parado por um longo momento. O campo de treinamento ao redor parecia respirar em uníssono comigo, imerso em uma quietude profunda. Havia um silêncio novo em meu peito — não um silêncio vazio, mas atento, receptivo. Como se tudo de que eu precisava para o próximo passo estivesse ali, presente, apenas aguardando minha percepção e prontidão.

Fechei os olhos novamente.

Pensei no Querer, naquela urgência silenciosa e primordial que ela descrevera. Onde ele residia exatamente? Não era puramente na mente lógica, nem apenas no coração físico que bombeava sangue. Era algo mais profundo, mais visceral, conectado à própria vontade de existir. Como quando acordei naquela noite de minha infância chorando sem motivo aparente, uma angústia existencial que transcendia a compreensão infantil. Ou quando desejei ardentemente, com cada fibra de meu ser, que minha mãe parasse de chorar após o enterro de meu pai na vida anterior. Aquilo era o Querer em sua forma mais pura e intensa.

Eu queria... mas o quê, exatamente, neste momento de aprendizado?

Queria simplesmente ser forte, acumular poder?

Não... mais do que força bruta, eu queria entender. Compreender a mim mesmo, compreender a energia, compreender meu lugar neste novo mundo.

Esse reconhecimento da verdadeira natureza do meu Querer foi o primeiro passo para o controle.

Então recordei a imagem da vela entre as mãos, a energia contida. Mas, desta vez, em vez de apenas conter a chama interior, tentei conscientemente dar-lhe forma. Imaginei um círculo de luz pulsante, depois um fio tênue e brilhante — mas tudo ainda era instável. A energia vibrava erraticamente, ameaçando escapar entre os ‘dedos’ de minha mente focada.

“Não é força bruta. É forma precisa”, lembrei a mim mesmo.

O Querer, ainda um tanto indisciplinado, impulsionava, impaciente, como uma criança teimosa batendo o pé, querendo resultados imediatos. Mas minha Consciência, agora mais desperta e fortalecida pela lição de Margareth, agia como um guia paciente e firme, segurando sua mão invisível, direcionando-o com calma: ‘aqui, não desta forma... ainda não está pronto... respire...’.

A energia respondeu a essa nova dinâmica interna. Quente, como da primeira vez que a senti, mas menos agressiva, mais receptiva à minha orientação. Era como se agora ela também me escutasse, reconhecesse a autoridade tranquila da Consciência sobre o ímpeto do Querer. Eu queria que ela girasse, então visualizei isso com clareza: um pequeno vórtice de energia luminosa no centro de meu peito, girando lentamente, harmoniosamente, como uma nebulosa cósmica dando origem a uma nova estrela. A energia hesitou por um instante, como se avaliasse minha intenção, depois obedeceu. Girou. Apenas um fragmento de segundo, um vislumbre fugaz. Mas girou sob meu comando silencioso.

Minhas mãos tremiam levemente. Não de medo ou fraqueza, mas de pura vitalidade ressoando com o esforço da Vontade focada.

Abri os olhos, e o mundo ao redor parecia sutilmente diferente, mais vibrante. Como se cada folha, cada pedra, cada sombra tivesse adquirido mais contorno, mais presença, mais vida própria.

Margareth continuava sentada na pedra, os olhos semicerrados, observando-me sem interromper meu processo. Seus lábios permaneceram neutros, mas seus olhos... sim, eles continham um universo de aprovação silenciosa, o reconhecimento do progresso real.

Tentei mais uma vez, buscando aprimorar o controle.

Desta vez, o Querer era clareza de intenção: manifestar e mover. E a Consciência, o contorno preciso da forma desejada: uma pequena esfera de luz estável. A chama interior não vazou. Ela moveu-se minimamente — conforme meu comando silencioso. Pequena, imperfeita, oscilante... mas inegavelmente minha, respondendo à minha Vontade.

Não era um feitiço aprendido em pergaminhos. Não era uma explosão de poder bruto e descontrolado.

Era apenas... intenção pura moldada em existência efêmera, um diálogo silencioso entre mim e a energia.

E então compreendi, em um nível ainda mais profundo de meu ser: os princípios da Vontade podem ser ensinados por um mestre, mas sua verdadeira compreensão e domínio só advêm da experiência direta, da prática constante, quando ela se torna parte intrínseca e inseparável de quem você é.

Continuei praticando por mais algumas horas, explorando essa nova sensação de diálogo com a energia, testando os limites de minha concentração e controle, até que Margareth me chamou novamente, sua voz suave quebrando minha imersão, indicando que finalizássemos o treino por aquele dia.

— Amanhã continuaremos com este mesmo treinamento, focando no aprofundamento de sua compreensão sobre o Querer e a Consciência, e na estabilização da forma manifestada. O caminho é longo, mas você está progredindo bem.

Assenti e encerrei a prática por ali. Pela primeira vez, não tentei ‘comandar’ a energia como uma força externa a ser subjugada.

Eu dialoguei com ela em silêncio, com respeito.

E ela, à sua maneira sutil, respondeu.

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