Três dias se passaram desde que iniciei o treinamento focado em moldar a Vontade. De início, a frustração foi minha companheira mais constante; errei muito mais do que acertei. Contudo, mesmo em meio às falhas repetidas, cada tentativa malsucedida não me impedia de adquirir novos insights sobre o processo e, principalmente, sobre mim mesmo. Cada erro funcionava como um espelho sutil, refletindo partes de minha própria natureza que ainda estavam desalinhadas, ecos de desequilíbrios passados e presentes.
Claro, a correção dessas falhas internas não seria instantânea, um processo que demandaria tempo e introspecção contínua. Mas a consciência delas era o primeiro passo, e eu não tinha intenção de me estagnar, permitindo que continuassem a ser um obstáculo em meu caminho.
Durante esses três dias intensos, em nenhum momento realizei qualquer conjuração ofensiva ou defensiva, como lançar uma esfera de fogo contra um alvo ou erguer uma barreira protetora – atos que qualquer aprendiz ansioso por resultados visíveis certamente desejaria tentar. Margareth, com sua firmeza tranquila e olhar perspicaz, impediu-me. Seu foco era claro: queria que eu me familiarizasse profundamente com a dinâmica interna do Querer e da Consciência, até que ambos se alinhassem harmoniosamente à Força de Vontade. Essa trindade, segundo ela, era o alicerce fundamental das verdadeiras artes arcanas silenciosas, o poder que nascia de dentro para fora, sem a necessidade de muletas externas.
Foi nesse ponto, imerso na repetição e na auto-observação, que comecei a notar um padrão recorrente, um simbolismo que parecia permear tudo.
O número três.
O triângulo.
Ele estava presente em toda parte. Não apenas nas palavras e conceitos que Margareth utilizava – Querer, Consciência, Vontade – mas na própria estrutura fundamental do que eu estava aprendendo a sentir e a manipular.
Era como um triângulo arcano primordial. Uma forma geométrica básica, mas incrivelmente estável – a menor figura capaz de sustentar uma estrutura, de criar um ponto de equilíbrio entre três forças distintas que, isoladamente, talvez fossem incompletas ou instáveis.
Pensei em outras tríades que permeiam a existência e o pensamento humano: corpo, alma e espírito; nascimento, vida e morte; passado, presente e futuro. A própria estrutura do tempo parecia dançar ao ritmo do três.
Tudo parecia convergir para essa ideia central: o poder real, a manifestação equilibrada, nasce da convergência harmoniosa de três pilares essenciais. Cada um sustentando os outros, e juntos formando algo maior, mais completo e estável do que qualquer um deles seria capaz de criar sozinho.
Eu habitava o corpo de uma criança de três anos, mas aquela imagem arquetípica do triângulo não me parecia estranha ou abstrata. Ressonava em mim com uma familiaridade profunda, quase ancestral. Como algo que já existia latentemente dentro de minha própria essência, e que agora, através do treinamento e da introspecção, apenas despertava para minha consciência.
E foi aí que a compreensão começou a se cristalizar:
O Querer era a força bruta, o instinto primordial, a faísca inicial.
A Consciência era o contorno preciso, a lucidez diretiva, o leito do rio.
E a Vontade era o elo dinâmico – a ponte ativa que permitia que um se transformasse no outro, que o impulso se tornasse intenção focada.
Mas, além dessa trindade ativa, havia uma quarta presença, silenciosa, quase imperceptível… sentida nas pausas entre os exercícios intensos, nas pulsações sutis e profundas dentro do meu peito, e na leve vertigem que por vezes me acometia após cada tentativa de moldar a energia. Uma presença que sustentava todo o processo.
A Energia Vital.
Margareth ainda não a havia nomeado explicitamente em nosso treinamento, mas eu sabia, com uma certeza intuitiva que transcendia a lógica, que ela estava lá. Vibrando. Aguardando o momento certo para ser integrada ao processo. A fonte que alimentava a chama.
E com essa noção se formando em minha mente, compreendi que meu próximo passo fundamental seria aprender não apenas a invocar e direcionar essas forças… mas a sustentá-las sem me consumir no processo, sem esgotar a fonte vital que me animava.
E isso, eu sentia em meu âmago, exigiria muito mais do que simples foco ou técnica.
Exigiria verdade interior. Autoconhecimento. Equilíbrio.
★★★
Após o terceiro dia de treinamento focado na Vontade, Margareth me chamou para uma conversa ao final da tarde. Presumi que fosse algo relacionado ao meu progresso ou a alguma nova instrução, mas, para minha surpresa, o assunto era outro: meu aniversário.
— É mesmo... amanhã completo três anos nesta vida — pensei, um tanto chocado por quase ter me esquecido de uma data tão marcante, imerso que estava nos desafios do aprendizado arcano.
— Elian, hoje encerraremos seu treino mais cedo — disse ela, com aquela serenidade habitual que parecia emanar dela como uma aura. — Seu pai virá buscá-lo em breve, pois amanhã é seu aniversário. Portanto, não haverá treinamento. Aproveite esta oportunidade para descansar o corpo e a mente. — Ela fez uma breve pausa, seu olhar encontrando o meu com uma firmeza inconfundível antes de continuar:
— E, embora eu confie em sua disciplina crescente, reafirmo: não ouse continuar seu treino em casa. Nem para acumular energia de forma descuidada, nem para tentar praticar as artes silenciosas sem supervisão. Os riscos ainda são grandes. Entendido?
O olhar dela era o de uma mestra experiente, que não admitia desobediência quando a segurança estava em jogo. Assenti prontamente, sem hesitação, e, ao perceber minha compreensão e respeito, seus olhos suavizaram visivelmente.
Voltamos para o interior da mansão e, ao chegarmos a uma sala aconchegante que me lembrava uma copa ou pequena biblioteca na Terra, vi meu pai já me esperando. Um sorriso genuíno iluminou seu rosto assim que me viu. Despedimo-nos de Margareth e partimos.
★★★
No dia seguinte – o dia do meu terceiro aniversário nesta nova existência – acordei um pouco mais tarde do que o habitual, um reflexo das intensas e desgastantes aulas com a mestra Margareth. Meu corpo, ainda pequeno, agradecia imensamente pelo repouso prolongado.
Levantei-me, sentindo os músculos levemente doloridos, mas a mente clara. Fui direto ao banheiro para lavar o rosto, a água fria sobre a pele ajudando a dissipar os últimos vestígios de sono. Em seguida, desci as escadarias de madeira da nossa casa, seus degraus rangendo levemente sob meus pés com um som familiar e acolhedor, um contraste reconfortante com a imponência silenciosa da mansão de Margareth.
Cheguei à sala de jantar, o local de nossas refeições em família. Mas, naquela manhã, encontrei apenas minha mãe, a pequena Vivian adormecida em sua cesta, e a criada que nos auxiliava, Antonella.
Percebi que ainda não havia dedicado um pensamento a ela em minhas narrações internas. Antonella era uma presença constante e discreta em nossa casa. Tinha quarenta e dois anos, olhos castanho-escuros que transmitiam uma calma experiente, e cabelos que mesclavam fios platinados e grisalhos, talvez um testemunho do tempo ou das provações da vida. Media aproximadamente 1,67 metro, com um corpo magro e ágil. Havia nela uma beleza serena, que emanava mais de seu olhar bondoso e de sua postura digna do que de traços convencionais.
Ao entrar na sala, minha mãe me chamou com um gesto suave, indicando o lugar ao seu lado. Caminhei até ela e a abracei, buscando o calor reconfortante e o cheiro familiar que sempre me ancoravam. Fiquei assim por alguns segundos, absorvendo aquele momento de afeto simples e profundo, antes de me soltar.
Antes de me sentar à mesa, aproximei-me da cesta onde Vivian dormia. Estava tranquila, encolhida de uma forma adorável que me arrancou um sorriso involuntário. Inclinei-me e passei a mão com extremo cuidado em seu rostinho sereno, sentindo a maciez de sua pele. Parecia um anjo adormecido. Embora nunca tenha visto um anjo de verdade, a pureza e a luz que emanavam de Vivian eram, para mim, algo celestial. Um desejo profundo de protegê-la, de garantir que sua inocência jamais fosse maculada, brotou em meu peito. Que ela mantivesse sempre essa paz interior.
Voltei para a mesa, cumprimentei Antonella com um "bom-dia" respeitoso, e sentei-me ao lado de minha mãe.
Durante o café da manhã, perguntei sobre meu pai. Minha mãe respondeu com tranquilidade que ele precisara resolver alguns assuntos urgentes no feudo, relacionados à colheita e aos recentes problemas de saúde dos aldeões, mas que retornaria a tempo para a celebração na mansão de Margareth.
— Uma festa... — pensei, observando a animação contida de minha mãe. — Não vejo necessidade, parece um desperdício de recursos e tempo. Mas eles parecem tão felizes com a ideia... não tenho o direito de estragar a alegria deles.
O sorriso suave e esperançoso de minha mãe ao falar dos preparativos era contagiante. Não tive coragem de expressar meu desinteresse ou minhas ressalvas. Mesmo que aniversários tivessem perdido o significado pessoal para mim, bastava ver aquele brilho nos olhos dela para entender que, às vezes, participar da felicidade de quem amamos é mais importante do que nossas próprias preferências.
Como de costume, ela me perguntou sobre meus aprendizados com Margareth. E, mesmo sendo as mesmas perguntas de quase todos os dias, eu nunca me cansava de responder. A experiência de ter perdido minha mãe na vida anterior me ensinara o valor inestimável de cada interação, de cada palavra trocada, de cada momento compartilhado. Ouvir sua voz, responder às suas perguntas, até mesmo receber uma repreensão carinhosa por alguma travessura infantil (que eu raramente cometia, dada minha mente adulta) – tudo isso era um presente precioso.
Uma hora após o desejum, Vivian despertou. Fui até sua cesta e comecei a brincar com ela. Mesmo sem plena consciência do mundo, ela sempre reagia com sorrisos e gorgolejos quando eu fazia caretas exageradas ou emitia sons engraçados. Sua risada, leve e cristalina, era como um bálsamo para minha alma, um lembrete da inocência que eu jurara proteger. Fiquei com ela por cerca de trinta minutos, embalando-a suavemente, até que adormeceu novamente, com a tranquilidade de quem confia plenamente no mundo ao seu redor.
Depois, dediquei um tempo aos estudos com minha mãe. Ela me ensinou mais sobre as complexas etiquetas da nobreza – um conhecimento essencial, mesmo para um Baronete Arcano de baixo escalão – e revisamos alguns capítulos da história conturbada do reino de Malkuth. Éramos parte da aristocracia, afinal, e a ignorância não era uma opção.
Após os estudos, subi para meu quarto e decidi meditar. Não uma meditação focada em canalizar ou acumular energia arcana – Margareth fora clara em sua proibição –, mas sim uma prática voltada para acalmar a mente, para buscar clareza e autoconhecimento. Um momento de silêncio interior, onde eu tentava decifrar as complexas camadas de minha própria existência. Permaneci assim por quase duas horas, imerso na quietude, até ser chamado por Antonella para o almoço.
Ao chegar à sala de jantar, notei novamente a ausência de meu pai. Uma leve inquietação surgiu em meu peito.
— Será que está tudo bem no feudo? — murmurei para mim mesmo, quase inaudivelmente.
Almocei com minha mãe em um silêncio respeitoso, pontuado por conversas triviais. Ela não demonstrava preocupação aparente, então me esforcei para afastar minha própria ansiedade. Após a refeição, retornei ao quarto e me deitei para um breve descanso.
Ao acordar, retomei a meditação silenciosa. Foi então que algo inusitado ocorreu. Durante o mergulho introspectivo, mais profundo que o habitual, senti algo diferente – uma presença sutil, ou talvez uma sensação vibracional distinta. Era quase imperceptível, como o eco distante de um sentimento antigo, profundamente familiar, mas ainda inalcançável pela minha consciência desperta. Como se algo estivesse adormecido dentro de mim... mas ainda não fosse verdadeiramente parte de mim, não estivesse integrado.
Tentei focar nessa sensação, alcançá-la, decifrá-la... mas ela era elusiva, escorregadia, escapando por entre os dedos de minha mente como água. Quando retornei à consciência plena do ambiente, percebi que quase três horas haviam se passado naquele estado meditativo profundo.
— Elian. — A voz suave de minha mãe soou do lado de fora, acompanhada por leves batidas na porta. Saí da meditação lentamente, trazendo a consciência de volta ao corpo físico. — Está quase na hora de irmos para a festa. É melhor você tomar um banho e se trocar. Seu pai já chegou e acabou de sair do banho também.
Assenti, ainda que ela não pudesse me ver, e me levantei devagar, a mente ainda processando a estranha sensação experimentada. Aquilo era novo. Não parecia ser energia arcana da forma como eu a conhecia, nem uma simples emoção passageira. Era algo mais fundamental, mais intrínseco.
Mas, fosse o que fosse… algo dentro de mim havia começado a se mover naquele instante, um despertar silencioso nas profundezas do ser.
★★★
Tomei um banho demorado, a água morna ajudando a relaxar os músculos tensos pelo treino e pela meditação prolongada, enquanto tentava afastar, ou melhor, integrar, aquela sensação persistente que havia emergido. Não a rejeitava, pois sentia que era importante, mas também não sabia como lidar com ela conscientemente – então a deixei repousar no fundo da mente, como uma brasa adormecida aguardando o sopro certo para reacender.
Vesti as roupas formais que minha mãe havia escolhido com cuidado: um traje nobre infantil confeccionado em lã fina de um azul-escuro profundo, adornado com botões dourados polidos que brilhavam discretamente. As calças eram bem ajustadas, e uma faixa de cetim violeta, a cor do despertar arcano, estava presa à cintura, ostentando o brasão da nossa família – um escudo simples com uma chama estilizada – bordado em delicadas linhas prateadas. As botas eram de couro escuro, flexível e bem engraxado, e até meu cabelo, geralmente um pouco rebelde, foi cuidadosamente penteado por Antonella – que, com um sorriso maternal, fez questão de comentar que eu parecia “um pequeno cavalheiro pronto para a corte”.
Desci as escadas e encontrei meu pai já pronto, aguardando junto à entrada principal da casa. Lucius vestia um traje de cerimônia sóbrio, mas impecável, que refletia sua posição e personalidade: calças de alfaiataria em tom vinho escuro, um casaco longo cinza-carvão com detalhes sutis em preto nos punhos e ombros, e uma gravata de tecido nobre bordado em azul-marinho. Seus cabelos característicos, de um preto com reflexos azulados, estavam penteados para trás, revelando a testa ampla. Sua postura, como sempre, era ereta e serena – a postura de alguém que carrega o peso de responsabilidades e talvez de um passado complexo, mas o faz com dignidade silenciosa.
Minha mãe surgiu em seguida, e sua presença, como sempre, irradiava uma elegância gentil e calorosa. Maria usava um vestido longo de seda em tom creme, com delicados detalhes bordados em fio dourado nas mangas longas e na gola alta e discreta. O decote em formato de coração era sutil, elegantemente coberto por um véu de renda translúcida que repousava sobre seus ombros. Pequenos brincos de pérola realçavam seu semblante delicado, e o cabelo loiro dourado estava preso em um coque trançado e elaborado, adornado com uma tiara simples de prata que cintilava suavemente. Seus olhos azul-marinho, profundos e expressivos, sorriram para mim com uma ternura que aquecia meu coração.
Em seus braços, estava Vivian, agora desperta e curiosa, envolta em um vestidinho branco imaculado com detalhes bordados à mão em fio azul-claro – uma obra delicada de Antonella. O vestido possuía mangas fofas e pequenas fitas de cetim amarradas na cintura. Sobre os cabelos finos e claros de minha irmã, um pequeno laço azul-celeste adornava sua cabeça, completando o visual angelical. Ela me encarou com seus olhos grandes e vivos, e um sorriso espontâneo brotou em seus lábios, sem motivo aparente – como se a simples alegria de existir fosse razão suficiente para sorrir.
Juntos, como uma família unida e preparada para a ocasião, fomos até a entrada da propriedade, onde a carruagem já nos aguardava, pronta para nos levar à celebração.
Era uma carruagem de construção sólida, feita de madeira escura e lustrosa, com acabamentos dourados em espirais discretas que adornavam as laterais e o teto. Os brasões da Casa Freimann estavam pintados com esmero nas portas. As rodas de ferro pareciam robustas e estavam polidas, e os cavalos que a puxavam eram dois alazões imponentes, de pelos reluzentes e crinas bem escovadas, presos por arreios de couro limpos e firmes. O cocheiro, um homem de idade avançada e semblante tranquilo, que servia nossa família há anos, vestia um uniforme simples, mas digno: calça preta, camisa branca de linho e um colete azul-escuro com botões de metal. Seu chapéu de aba curta e as luvas de couro reforçavam o ar cerimonioso da ocasião.
A carruagem balançava levemente sobre a estrada de terra batida enquanto nos afastávamos de nossa propriedade. O caminho até a mansão de Margareth não era excessivamente longo, mas serpenteava por uma trilha arborizada, ladeada por campos verdejantes e pequenas colinas suaves que ondulavam na paisagem. As árvores ao longo da estrada já exibiam os primeiros tons dourados e âmbar em suas folhas – estávamos no fim do verão, e o outono se anunciava com passos delicados e uma brisa mais fresca. A luz do sol poente atravessava as copas das árvores em feixes dourados e oblíquos, pintando o chão com padrões de luz e sombra.
Eu observava a paisagem em silêncio, perdido em pensamentos. O vento suave entrava pela fresta da janela, balançando levemente os cabelos soltos de minha mãe e arrancando risadas baixinhas de Vivian. Meu pai olhava para fora, o semblante pensativo, talvez refletindo sobre os assuntos do feudo ou sobre o significado daquela celebração para o futuro de seu filho.
Ao nos aproximarmos da mansão de Margareth, avistamos alguns empregados posicionados do lado de fora, próximos ao portão principal, como uma pequena guarda de honra informal. Usavam uniformes formais e discretos: camisas brancas impecáveis com coletes cinza-claro, calças pretas bem passadas, e aventais escuros presos à cintura. Alguns homens usavam luvas brancas, outros não. As mulheres trajavam vestidos escuros de corte simples, com aventais brancos e toucas discretas de tecido que cobriam os cabelos. Cada um mantinha uma postura ereta e respeitosa, e ao avistarem nossa carruagem se aproximando, endireitaram ainda mais a coluna, demonstrando prontidão.
O grande portão de ferro forjado já estava aberto, e a entrada da mansão havia sido sutilmente adornada para a ocasião. Pequenas bandeiras do Reino de Malkuth tremulavam discretamente em mastros improvisados, e arranjos florais elegantes nas cores violeta e dourado – as cores simbólicas do despertar e da ascensão arcana, como eu sabia – enfeitavam os pilares de pedra da entrada.
A carruagem parou suavemente diante do portal. O cocheiro saltou com agilidade e caminhou até nossa porta, abrindo-a com um gesto cortês. Senti meu coração bater um pouco mais rápido, uma mistura de expectativa e uma leve apreensão.
— Chegamos — disse meu pai, com um leve sorriso encorajador, quebrando o silêncio.
Desci primeiro, ajeitando meu traje. O ar ali parecia diferente, mais denso, carregado não apenas com a energia arcana latente que sempre envolvia a mansão, mas também com uma atmosfera de expectativa e celebração.
Ainda não sabíamos – ou talvez, em algum nível intuitivo, soubéssemos em silêncio – que aquele simples aniversário de três anos marcaria o início de algo muito maior, um ponto de inflexão em nossas vidas e talvez no destino de muitos.
Ao descer da carruagem e aguardar meus pais, meu olhar percorreu os arredores e pousou em outra carruagem, mais opulenta que a nossa, parada um pouco distante, em uma área que serviria como estacionamento improvisado. Observando-a melhor, reconheci o brasão pintado na porta: a espada flamejante sobre fundo negro. A carruagem da Casa Stein.
— O que os Stein estão fazendo aqui? — pensei, a surpresa misturando-se à curiosidade. Por que a família do Conde, a mais alta nobreza de Sangue-Puro da região, estaria presente na festa de aniversário do filho de um simples Baronete Arcano?
Mesmo sabendo que pertenciam a uma facção mais tolerante, que aceitava a Nobreza Arcana, sua presença ali era inesperada e intrigante. Não tínhamos contato direto com eles, apesar de sermos tecnicamente seus vassalos. Aquilo adicionava uma camada de mistério à celebração.
Caminhamos lentamente pela alameda de cascalho que levava à entrada principal da mansão. Lá, Júlia, a criada de confiança de Margareth, nos esperava. Ela usava um vestido um pouco mais formal que o habitual, de tecido escuro e bem cortado, com discretos detalhes em renda nas mangas e na gola, e um avental branco impecavelmente limpo. Curvou-se levemente ao nos ver, um sorriso respeitoso nos lábios – mas notei um brilho fugaz e inquieto em seus olhos castanhos, como se guardasse um segredo ou antecipasse algo importante.
— Sejam muito bem-vindos, Senhores Freimann. Lady Margareth os aguarda — disse ela com sua voz serena e melodiosa, fazendo um gesto convidativo para que entrássemos.
Assim que cruzamos a imponente porta principal de carvalho maciço, o perfume delicado e característico da mansão – uma mistura de flores secas, ervas aromáticas e incenso suave – nos envolveu como um véu acolhedor e misterioso. O saguão estava deslumbrante, impecavelmente limpo, como se tivesse sido varrido e polido pelos próprios ventos controlados por Margareth. Tapetes espessos e ricamente bordados em tons de vinho e azul profundo cobriam o chão de madeira escura e polida, abafando nossos passos. Candelabros de prata maciça pendiam do teto alto, adornados com cristais encantados que cintilavam suavemente com uma luz própria, mesmo sem a presença de chamas visíveis, criando uma iluminação mágica e difusa.
Passamos por um corredor largo, cujas paredes estavam adornadas com tapeçarias antigas que narravam histórias do Reino e lendas arcanas. Quadros a óleo retratavam figuras imponentes de arcanistas do passado em poses de meditação profunda, conjuração poderosa ou ascensão espiritual. Vasos de porcelana fina, contendo lírios brancos e outras flores mágicas de cores vibrantes e cambiantes, estavam dispostos em nichos elegantes entre colunas de mármore claro que sustentavam o teto abobadado.
Enquanto avançávamos em direção ao coração da mansão, vislumbrei outros convidados circulando mais à frente ou conversando em salas adjacentes que se abriam para o corredor. Alguns rostos eram familiares – arcanistas locais, amigos da família Freimann, talvez alguns mercadores prósperos. Outros, porém, eram completamente desconhecidos, trajando vestes de seda e veludo de uma fineza que parecia deslocada para a celebração de um simples baronete. Era como se aquele aniversário tivesse se tornado, subitamente, uma ocasião de importância inesperada, reunindo figuras de diferentes esferas sociais e talvez políticas.
Por fim, as grandes portas duplas do salão de festas principal surgiram à nossa frente. Feitas de madeira escura e entalhada com motivos arcanos, estavam abertas de par em par por dois criados uniformizados, que nos saudaram com um gesto cerimonial e silencioso.
Quando adentrei o salão, por um instante, minha respiração ficou suspensa.
O espaço estava inteiramente transformado, irreconhecível em relação à sua aparência habitual. Cortinas pesadas de veludo violeta desciam majestosamente dos altos vitrais que filtravam a luz do entardecer, presas por grossos laços dourados. Faixas translúcidas de tecido encantado flutuavam sutilmente pelo ar, logo abaixo do teto, emitindo leves brilhos prateados e dourados conforme nos movíamos. O próprio teto parecia ter desaparecido, substituído por uma ilusão arcana perfeita que projetava o céu crepuscular em constante movimento – com nuvens em tons vibrantes de laranja, rosa e púrpura dissolvendo-se lentamente em constelações cintilantes que pareciam vivas.
As mesas estavam dispostas com elegância ao redor do salão, cobertas por toalhas de linho branco imaculado e adornadas com arranjos de flores encantadas que reagiam sutilmente aos sons do ambiente – suas pétalas desabrochando ou fechando-se delicadamente ao som de risos ou da música suave. Um quarteto de cordas, posicionado discretamente em um canto elevado, tocava uma melodia calma e etérea. Bandejas de prata flutuavam autonomamente entre os convidados, oferecendo doces finos, taças de cristal com bebidas coloridas e frutas exóticas artisticamente arranjadas.
No centro do salão, atraindo todos os olhares como um ponto focal de poder e serenidade, estava Margareth.
A anciã, geralmente vista em trajes simples de curandeira ou mestra, não usava seu manto funcional habitual. Em vez disso, trajava uma túnica longa e fluida de um tecido prateado que parecia captar e refletir a luz mágica do ambiente, com complexos detalhes bordados à mão em fio azul-escuro nos punhos e na barra. Seu cabelo branco, antes sempre preso em um coque prático, agora caía em ondas suaves e brilhantes até os ombros, conferindo-lhe um ar mais suave, quase régio. Uma tiara fina e delicada repousava sobre sua testa, ostentando uma única pedra azul opalina no centro, que pulsava com uma luz suave e intermitente. Seus olhos, geralmente tão serenos e analíticos, estavam vivos, brilhantes – quase radiantes – enquanto cumprimentava os convidados com um misto de solenidade formal e ternura genuína.
Quando seus olhos encontraram os meus através do salão, por um breve e intenso momento, senti novamente aquela conexão familiar e inquietante se agitar dentro de mim. A sensação de reconhecimento mútuo, de um entendimento que transcendia as palavras e o tempo. Era como se ela soubesse não apenas quem eu era, mas o que eu era, e o que estava por vir.
Mas antes que eu pudesse processar completamente essa sensação ou esboçar qualquer reação, uma nova presença surgiu em meu campo de visão, desviando minha atenção: uma criança de cabelos ruivos flamejantes, segurando com delicadeza a mão de uma dama nobre de postura altiva e expressão impassível.
Belle Von Stein. E sua mãe, a Condessa.
Meu coração acelerou novamente – desta vez, não por nervosismo social, mas pela pura estranheza e pelo peso implícito daquele encontro inesperado.
— O que, em nome dos deuses e dos ancestrais arcanos, aquela família fazia aqui, na festa de aniversário do filho de um Baronete Arcano? — Pensei.