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Chapter 17 - A Primeira Centelha da Vontade.

Após o primeiro fracasso na tentativa de manifestar a Arte Arcana, persisti por mais algumas vezes. Contudo, com o passar das tentativas, uma constatação frustrante se impôs: nada mudava. Exatamente... nada. O estresse começou a acumular-se, e um crescente desânimo tomou conta de mim a cada falha.

— O que poderia estar errado? Por que a *Augue* — a esfera de fogo — não alcançava o alvo? — questionei-me, a irritação borbulhando.

A frustração intensificava-se. Cheguei a duvidar das intenções de Margareth, suspeitando que ela pudesse estar apenas se divertindo com minha inépcia. Foi então que ela me chamou para conversar. Sua voz era calma, porém firme — e suas palavras redefiniram minha perspectiva.

— Não se trata de falta de talento, Elian. Muito menos de um erro seu. O que ocorre é... natural — disse ela, o olhar direto e penetrante.

— Natural? — repliquei, o tom carregado de uma rispidez nascida da raiva e do cansaço acumulados.

Ela sustentou meu olhar, aguardando uma reação mais sincera, menos defensiva.

— Exatamente. Acreditava que, apenas por ter despertado como uma Centelha, conseguiria realizar de imediato o que exige anos de treinamento dedicado? — questionou, a seriedade em sua voz dissipando minha irritação.

Eu compreendia o que ela queria dizer. No fundo, eu sabia. Estava permitindo que o ego inflasse minha percepção.

Mesmo com o receio constante de perder o controle e me ferir, o ego começava a fincar raízes. É um aspecto intrínseco à natureza humana, afinal. Já havia enfrentado sentimentos semelhantes em minha vida passada, durante meu desenvolvimento mediúnico, quando iniciei o processo de incorporação das entidades guardiãs que, segundo aquela tradição, todos possuímos.

Naquela época, o ego também me cegara. Passei a me sentir superior aos demais aprendizes. A arrogância criou vulnerabilidades. Entidades — que em algumas tradições são denominadas obsessores, kiumbas ou eguns — aproveitaram-se dessa brecha. Não eram guias espirituais. Não eram guardiões. E, ainda assim, por ignorância ou vaidade, permiti sua aproximação.

Sofri as consequências. Adoeci. Fui alvo de ataques espirituais, desequilíbrios que afetaram minha mente e meu corpo. A situação se agravou terrivelmente após a morte de minha mãe. A depressão me consumiu. O ódio, ainda mais intensamente.

Foi então que meu mestre — amigo próximo de meus pais, o homem que me acolheu para que eu não terminasse em um orfanato, nas ruas ou no mundo do crime — me ofereceu uma das lições mais duras de minha existência. Não através de gritos ou castigos. Mas com a verdade nua e crua.

Recordo-me vividamente de suas palavras:

*— Você acredita que seu pai estaria feliz ao vê-lo carregar esse ego, essa soberba de se julgar melhor que os outros? Acha que sua mãe aprovaria ver esse ódio crescendo dentro de você?*

*— Sua irmã... ela o amava imensamente. Infelizmente, ela ceifou a própria vida. Não a julgo por isso. Mas julgo você por estar se permitindo ser arrastado para o mesmo abismo.*

*— Você sabe que essas entidades buscam apenas sugar sua energia vital. Sabe que não são seus mentores, seus guardiões. Até quando permitirá que sentimentos inúteis o dominem?*

*— Não quero que esqueça o que aconteceu. Seria cruel exigir isso. Mas você precisa viver. Viva por eles. Viva por ela. E, principalmente, viva por você, Rodrick. É isso que eles mais desejariam.*

Mesmo tendo passado por tudo aquilo... lá estava eu, incorrendo nos mesmos erros do passado.

Encarei Margareth por alguns segundos, sentindo o rubor da vergonha tomar conta de meu rosto. Então, inclinei-me em uma reverência profunda, pedindo desculpas e reconhecendo meu equívoco.

Margareth... ela transcendia a figura de curandeira ou mestra. Era uma verdadeira guia. Sempre firme em seus propósitos, mas portadora de uma gentileza no olhar — aquela serenidade que apenas os que testemunharam o mundo ruir, e ainda assim escolheram o caminho do ensino, conseguem manter.

— Elian, pode ter parecido que eu estava apenas me divertindo às suas custas... — disse ela com suavidade — mas esta experiência foi necessária. Você precisa compreender que, mesmo possuindo talento inato, ainda necessitará de muito treinamento e disciplina. E percebeu que, em nenhum momento durante suas tentativas frustradas, você me solicitou conselhos ou orientação?

Assenti em silêncio.

Era isso. A arrogância me cegara novamente. Apenas por ter vivido dezenove anos na vida anterior, presumi que poderia transferir essa experiência para cá como se fosse sabedoria absoluta. Que presunção a minha... comparado a Margareth, com seus mais de sessenta anos — e décadas dedicadas à prática das artes arcanas — eu era apenas um recém-nascido neste caminho.

Cerrei o punho e dei um leve toque em meu próprio peito, murmurando para mim mesmo, como um lembrete necessário:

— Você é apenas um neófito, Elian. Não é mestre de coisa alguma. Está apenas engatinhando como Arcanista. Coloque-se em seu devido lugar.

Respirei fundo. Pedi desculpas novamente e, desta vez, com humildade genuína, perguntei:

— Margareth... qual foi exatamente o meu erro ao tentar lançar a *Augue*?

Ela me olhou com aquele olhar sereno e sábio, que parecia conter a paciência de eras.

— Seu erro? Além do fato de estar apenas começando... reside em ainda não saber controlar sua força de vontade — disse ela, pausando por um momento para me observar. — Quando mencionei que, um dia, você será capaz de utilizar as artes sem a necessidade de selos ou cânticos, referia-me precisamente a isso. O domínio da força de vontade é um dos pilares fundamentais. A energia arcana permeia tudo, abundante e neutra. Mas isso não significa que seja etérea como o ar ou dócil como uma brisa suave.

Inclinei a cabeça, confuso.

— O que exatamente é essa “força de vontade”? — perguntei. — Compreendo que meu entendimento ainda é limitado... mas eu estava concentrando toda a minha vontade em acertar o alvo. Presumi que fosse isso.

Ela sorriu levemente, mas seu tom permaneceu sério.

— E é exatamente aí que reside o equívoco — disse ela. — O desejo de acertar o alvo é apenas... desejo. Intenção superficial. A força de vontade é algo distinto. Mais profundo. Mais denso.

Ela respirou fundo, buscando as palavras mais adequadas para me fazer compreender a essência do conceito.

— A verdadeira força de vontade nasce da união sinérgica entre o querer, a consciência e, fundamentalmente, sua força vital. É o momento em que corpo, mente e alma convergem em uma única direção, com um propósito inabalável.

Ela caminhou até uma pequena mesa com duas cadeiras, sob a sombra de uma árvore próxima — a mesma onde havíamos tomado chá anteriormente. Segui-a em silêncio, absorvendo cada palavra.

— A Vontade, meu jovem... é mais do que mero querer — disse Margareth enquanto afastava algumas folhas secas da superfície da mesa. Limpou as mãos na túnica, fixou o olhar no meu como se perscrutasse minha alma, e continuou:

— É um fio condutor ancestral... mais antigo que os nomes dados às estrelas.

Fez um gesto convidando-me a sentar. Com os dedos, como se tecesse algo invisível no ar, prosseguiu:

— Ela se manifesta quando três elementos convergem, bem no âmago do ser: o Querer, a Consciência... e a Força Vital.

Fez uma pausa, fitando-me com intensidade.

— O Querer é o ponto de partida — disse ela, apontando para o próprio coração. — É a centelha primordial que impulsiona: eu quero viver, eu quero proteger, eu quero transformar o mundo, mesmo que ele tente me despedaçar no processo. Querer é fogo. Mas fogo desgovernado... consome em vão. Compreende, Elian?

— Sim — respondi, sentindo o peso da analogia.

— Então vem a Consciência — continuou, tocando a própria têmpora com leveza. — É quando o querer aprende a discernir. A Consciência pondera o peso do desejo. Avalia o que é possível, o que não é... e o que talvez se torne realizável, se houver coragem suficiente para tentar. É ela quem direciona a chama.

Ela fez outra pausa, longa e carregada de significado, aguardando minha indagação.

— E a Força Vital? — perguntei, sustentando seu olhar.

Ela se endireitou sutilmente. Por um instante, sua voz adquiriu uma ressonância diferente — mais profunda, quase ancestral.

— A Força Vital é o que o mantém de pé quando o mundo tenta vergá-lo. É a vibração no sangue quando a alma resiste à adversidade. É raiz... é pulso... é a própria alma em movimento, a energia que o anima.

Fechou os olhos por um momento, como se auscultasse um eco distante — ou antigo.

— Quando essas três forças se alinham, ah... então nasce a Vontade verdadeira.

Ela abriu um pequeno sorriso. Aquele sorriso sereno, marcado pela experiência — de quem já testemunhou muito e ainda assim permanece firme.

— Com Vontade genuína... até o impossível estremece. Porque não se trata apenas de magia ou força física. É o próprio ser afirmando ao universo: eu existo, e eu decido meu caminho.

Fez uma pausa. O ambiente pareceu silenciar, como se a própria natureza escutasse.

— É por isso que alguns triunfam, mesmo feridos... e por isso que outros sucumbem, mesmo sendo fortes. A Vontade é o que sustenta a alma quando todo o resto falha.

Ela se inclinou ligeiramente para frente, a intensidade em seu olhar.

— Lembre-se disso, Elian. Porque no fim... quando todos os outros recursos se esgotarem... será ela que o erguerá novamente.

Eu pretendia fazer mais algumas perguntas sobre como aplicar a força de vontade corretamente na prática arcana, mas, assim que abri a boca, ela me interrompeu:

— Já que fizemos esta pausa... que tal almoçarmos? O horário se aproxima, e acredito que será benéfico para você assimilar um pouco do que conversamos antes de retomar a prática.

Concordei, embora uma parte de mim desejasse continuar treinando imediatamente. Estava prestes a expressar isso — mas, antes que qualquer palavra escapasse, meu estômago roncou audivelmente. Fui, assim, compelido a aceitar a pausa.

Esperamos alguns minutos até que Julia trouxe o almoço.

Era uma ave assada — parecia ser pato, pela textura e sabor — servida com um cremoso purê de batatas. Havia também uma porção de arroz para cada um, uma tigela de sopa reconfortante, pães frescos e uma taça de água para mim... enquanto ela se servia de vinho.

*Ah, que falta faz uma boa cerveja gelada...* pensei com nostalgia.

Durante o almoço, Margareth mencionou meu próximo aniversário e comentou que havia sugerido a meu pai que a celebração ocorresse na mansão.

*O que ela estaria planejando?* questionei-me internamente.

Não acreditava que houvesse alguma intenção oculta, mas era curioso, pois ela sequer comparecera às minhas duas últimas comemorações. Bem, não adiantaria remoer isso agora.

Após terminarmos, ela me recomendou um breve descanso de pelo menos uma hora, para auxiliar na digestão e não prejudicar o treinamento subsequente.

Obedeci, ainda que relutante. Demorei um pouco a adormecer, mas eventualmente cochilei.

Uma hora depois, ela me despertou — e então retornamos ao campo de treinamento.

Margareth seguiu na frente, enquanto eu utilizei rapidamente o banheiro. Após cinco minutos, juntei-me a ela.

Quando retornei, o sol já havia iniciado sua descida no horizonte. A brisa estava mais fresca e, apesar do cochilo, minha mente parecia mais alerta e focada do que antes. Margareth já me aguardava, sentada sobre uma grande pedra lisa como se fosse um trono rústico, o olhar perdido na distância — talvez contemplando as nuvens... ou vislumbrando o potencial que eu poderia alcançar.

— Está pronto? — perguntou, sem desviar o olhar.

— Sim. — respondi, com firmeza renovada.

Ela assentiu, levantou-se com calma e aproximou-se da área de treino. O solo ainda exibia as marcas de minhas tentativas frustradas da manhã — pequenas crateras onde as esferas de fogo haviam caído inertes, sem alcançar sequer cinco metros.

— Hoje, seu objetivo não será destruir nada. — disse ela, ajeitando o manto que lhe caía sobre os ombros. — Seu desafio é mais sutil: tocar a energia sem permitir que ela escape.

— Tocar...? — franzi a testa, buscando compreender.

— Exato. Você irá convocar o poder, mas não o utilizará externamente. Irá senti-lo residir dentro de si, reconhecer seu limiar de controle e contê-lo... como alguém que prende a respiração sem se sufocar.

Fechei os olhos, inspirei profundamente, executei o selo para abrir o portão de fogo e murmurei: Inflamma.

Uma sensação familiar percorreu meu braço — como uma corrente elétrica sutil sob a pele, aquecendo a runa em minha mão esquerda. Mas, desta vez, em vez de forçar a energia para fora, concentrei-me em apenas... escutar. Sentir sua pulsação interna.

“Querer. Consciência. Força vital”, repeti mentalmente, como um mantra para ancorar minha mente.

Contudo, algo ainda vacilava. A energia tremia dentro de mim, pulsava como um tambor descontrolado, ansiando por se libertar. Meus dedos formigavam. Meu peito se contraía levemente.

Margareth observava em silêncio, sua presença calma e atenta.

— Não lute contra a força — disse ela, finalmente, sua voz quebrando o silêncio. — Mas também não se entregue passivamente a ela. Acolha-a. Como a um velho amigo que você precisa manter desperto e próximo, mas que não pode permitir que corra livremente pelos campos.

Tentei novamente, absorvendo suas palavras.

Desta vez, visualizei a energia não como uma força externa a ser domada, mas como uma chama interna, parte de mim. Não uma arma, mas uma vela acesa, protegida entre as mãos de minha consciência. E, gradualmente… muito gradualmente… a turbulência interna começou a se aquietar.

Não houve explosão. Não houve vazamento de poder. Mas a energia também não desapareceu.

Ela estava ali. Contida, viva, pulsando suavemente entre minhas mãos postas no selo. Uma chama quente e estável — não uma ameaça, mas uma promessa latente. Não queimava. Apenas aquecia, como um reconhecimento mútuo, uma aceitação de que ela também fazia parte de quem eu era.

Abri os olhos. Margareth me observava com um leve sorriso satisfeito.

— Isto… é o começo. — disse ela. — Você tocou na Vontade, mesmo que por um breve instante.

Senti meu peito se expandir com um misto de alívio e realização, mas contive o impulso de sorrir abertamente. Ainda não era o momento para celebrações.

Ela se virou e caminhou de volta para a pedra onde estivera sentada.

— Amanhã, faremos algo diferente. Você aprenderá a dar forma à sua Vontade. Não basta sentir a energia; você precisa aprender a moldá-la com propósito.

Continuei repetindo o exercício de contenção por horas, até que meus braços começassem a pesar e a luz do dia cedesse às sombras do crepúsculo. Mesmo assim, a relutância em parar era grande. Pela primeira vez em muito tempo, sentia que estava interagindo com algo que era genuinamente meu, uma extensão de minha própria essência.

Enquanto recolhia a última centelha da chama interna, tive uma sensação fugaz e estranha… como se, por um átimo de segundo, alguém — ou algo — tivesse me observado de dentro daquela energia contida. Um vislumbre. Um eco distante. Ou talvez apenas fruto de minha imaginação fatigada.

E ali, sob o céu tingido de ouro do entardecer, senti que, pela primeira vez, eu havia dado um passo real e significativo neste novo caminho.

Não como Elian, o filho.

Nem como Elian, o renascido.

Mas como Elian, o futuro Arcanista.

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